sábado, 25 de abril de 2009

Um ano na vida de uma voluntária portuguesa

4.000 quilómetros a leste
Liliana Guimarães passou um ano na Estónia em serviço de voluntariado. Hoje, é mais tolerante, está mais esclarecida e tem dormida em quase todos os cantos da Europa

Liliana Guimarães, 25 anos. Portuguesa, sanjoanense, a acabar a licenciatura em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, toma a decisão da sua vida em Abril de 2006. "Queria emigrar. Queria ser estrangeira. E achei que era a altura ideal", diz, recordando a experiência, três anos depois. Graduada, desempregada e sem namorado, Liliana - Lee, para os amigos, Miss Lee na blogosfera - achou que era a altura ideal. "Era agora ou nunca".
O Serviço Voluntário Europeu - do programa "Youth" - hoje, "Youth in Action" - oferecia-lhe todas as condições que procurava: viagens, seguro, alimentação e alojamento pagos, mais algum dinheiro de bolso. "Era o ideal", afirma.
Chega a Estónia em Janeiro de 2007 para trabalhar num projecto ligado ao jornalismo, no âmbito do qual presta apoio a jovens estudantes universitários que colaboravam num jornal de língua russa e dá formação básica na área a adolescentes, que depois aplicavam os conhecimentos na produção de conteúdos para o portal da associação SiiN (aqui), uma organização não governamental que acolheu e empregou Liliana durante a sua estadia na Estónia.
Era a primeira voluntária que aquela organização estava a acolher e a única. Os primeiros dias foram passados sozinha a ambientar-se, até que, em visita a uma escola, conheceu o primeiro membro daquela que viria a ser a sua "família", como insiste em chamar-lhe. O italiano Christian vivia num apartamento com mais seis voluntários estrangeiros, para onde afluíam todos os outros que residiam em Tallinn, ou seja, no espaço de uma semana, a jovem portuguesa passou a conhecer 15 pessoas que, com o passar do tempo, se transformaram numa "família coesa". "Éramos uma equipa incrível", lembra. "Se entrássemos num supermercado em Moscovo, todos sabiam o seu papel. Um sabia que tinha de ir ao vinho, outro ao pão, outro à carne...". As jantaradas sucediam-se todos os fins-de-semana. Liliana e os cinco franceses ocupavam a cozinha, a ucraniana e a russa íam às compras, o italiano e o grego lavavam a louça. "Era incrível", recorda, com saudade. "Sair de Portugal foi obviamente difícil, mas o que me esperava era muito maior do que aquilo que estava a deixar para trás".

Do lado de lá da cortina
De formação comunista, Liliana Guimarães chegou a ingressar na JCP, mas por pouco tempo. "Aos 14 anos, ganhei juízo e saí", afirma. No entanto, não nega que partilha alguns dos princípios marxistas e leninistas e que continua a votar PCP quando chamada às urnas, mas só enquanto o partido estiver longe de ganhar eleições. Convicções que ganharam mais força depois da experiência na Estónia, uma ex-república da antiga União Soviética que sofre ainda com feridas recentes da dissolução.
A celebrar em 2009 cinco anos sobre a adesão à União Europeia, a Estónia continua, na opinião da jovem portuguesa, a sofrer graves problemas de identidade e de cultura democrática, não caminhando no sentido da resolução. Em Tallinn, a população é 50 por cento russófona e 50 por cento estoniana e, dependendo da sua origem, é separada logo nos infantários. Há pessoas que não têm cidadania e outras que têm de mudar de nome para entrar na função pública.
A tensão entre o governo de direita que tenta apagar a memória do regime comunista e os russófonos foi particularmente visível em Abril de 2007, quando o primeiro decidiu deslocar uma estátua evocativa da libertação do país pelos soviéticos durante a ocupação nazi. Surgiram motins, o abastecimento de gás foi cortado e hackers russos atacaram as redes informáticas estonianas - o que é particularmente grave, sendo a Estónia um país onde quase tudo se faz pela Internet. A tudo isto assistiu Liliana, tendo mesmo sido aconselhada a não aparecer no local de trabalho durante aqueles dias. "Não sei se era capaz de viver ali quatro, cinco ou seis anos", reconhece, "porque a democracia não é aquela que conheço. Há racismo e xenofobia declarada pelo próprio governo e (nós, estrangeiros) chegámos a ter alguns problemas. Nunca imaginei que um dia me dissessem não vás aquele bar, porque és estrangeira".

Mais europeia
Ainda assim, a jovem portuguesa continua a olhar para a experiência como algo enriquecedor e os pequenos dissabores como episódios que fazem parte da aculturação. "Apercebi-me de coisas que nunca saberia se não tivesse vivido ali ou noutro país da ex-URSS", conclui. Os piores momentos foram mesmo aqueles em que teve de se deslocar ao aeroporto 12 vezes para se despedir da sua "família". "Éramos 15 e passamos a ser dois a jantar", recorda. No fim, voltou a Portugal muito mais "europeia" e com um sentido apurado de partilha que a leva, nomeadamente, a fazer voluntariado num centro local de apoio ao imigrante, em S. João da Madeira.
Para além dos contactos espalhados por toda a Europa - Liliana costuma dizer que, onde quer que vá, tem sempre onde dormir -, e da sede de viagens, da experiência ficaram ainda dois blogues, um pessoal (4000kmaleeste.blogspot.com) que funcionou desde o início como o diário de bordo da viagem - hoje, dizem-lhe os leitores, está mais desinteressante -, e um colectivo, cujo nome "L'Auberge Estonienne" é uma clara alusão ao filme "A Residência Espanhola", que conta a história de um jovem francês que parte em Erasmus para Barcelona. O blogue foi criado após a partida do primeiro voluntário e mantém-se activo, com cerca de 200 posts e visitas de todos os cantos do mundo.
"Sou muito, muito grata à União Europeia por, durante um ano, me ter permitido viver e trabalhar noutro país da União sem gastar dinheiro. Sem o voluntariado nunca teria sido possível", afirma, sem dúvidas. Liliana Guimarães continua fixada na ideia de voltar a emigrar, mas não se imagina a fazê-lo sem o suporte, tanto financeiro como institucional, da UE. "É outra segurança, porque sabes que, se te acontecer alguma coisa, alguém da comissão europeia vai procurar-te", alega.
Durante uma conferência de Jorge Sampaio na Estónia, a jovem portuguesa foi apresentada ao ex-presidente e Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações como uma também promotora do diálogo entre civilizações e culturas. "Nunca tinha pensado naqueles termos", afirma, sem esconder o orgulho. "Caiu-me bem".


Anabela S. Carvalho

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