sábado, 25 de abril de 2009

“Com uma mão dou-lhes pão, com a outra educação”

São como diamantes – duros, mas verdadeiras jóias. Crianças e jovens retirados, sem pedir licença, a uma família que não corresponderá a um padrão desejável. Directores, técnicos, auxiliares nos Centros de Acolhimento Temporário servem-lhes depois como pais e mães. Como sabem. Como podem. Sem criar grandes laços. Porque amanhã o seu lar pode ser outro.

Têm entre 12 e 18 anos. Vivem sob o mesmo tecto, sob as mesmas regras, respondem à “voz de comando” do mesmo pai. Não são irmãos, sequer parentes, mas fazem parte da mesma família. “Ana”, “Maria”, “André”, “Filipe”… Os nomes dos vinte jovens – dez rapazes e dez raparigas – que, desde Outubro de 2007, vivem no Centro de Acolhimento Temporário (CAT) da Solsil, no Silveiro (concelho de Oliveira do Bairro), são o que menos importa nesta história. Uma história que tem princípio, vai a meio, e tem um final ainda desconhecido.
Benjamim Pires, presidente da direcção da Associação de Solidariedade Social de Silveiro – Solsil, é “o pai de todos”. De todos os vinte adolescentes que, embora não tenham escolhido esta família, quis o Tribunal que para aqui viessem criar laços. De amizade, camaradagem, mas sobretudo, cumplicidade. Para o bem e para o mal.
“Eu dou-vos pão com uma mão e educação com a outra.” Assim lhes fala Benjamim Pires, que não tem dúvidas de que nesta casa se dá comida, saúde, roupa e sapatos, mas também um castigo, quando é preciso.
São jovens, rapazes e raparigas, provenientes do distrito de Aveiro, gerados em famílias desestruturadas, com problemas sociais de vária ordem. Previsivelmente, deveriam ficar aqui ou noutro qualquer CAT do país por um curto período: seis meses apenas. “Ao fim desse tempo, a situação do utente deve ser observada e deve mudar, ou seja, o jovem deve estar preparado para regressar ao seio familiar, é esse o primeiro interesse”, explica Benjamim Pires. Mas, muitas vezes, os seis meses vão-se prolongando, pois “raramente a família está estruturada para os receber”.
A rotina de um jovem que vive no CAT é igual à de tantos outros jovens “honrados”, adianta o “pai”: “tomam todas as refeições, do pequeno-almoço à ceia, vão às aulas, estudam, jogam computador, vêem televisão, alguns vão ao basquetebol a Sangalhos, outros ao futebol, quem quer vai à catequese ou participa em retiros… Ao fim-de-semana, quem merece vai a casa, quem não merece fica.” Mas, tal como todos os adolescentes da sua idade, também têm as suas “maroteiras”, apesar de hoje “já estarem completamente diferentes e não fazerem grandes patifarias por aí”, garante o responsável da Solsil.
De rotinas é feito também o dia do CAT da Santa Casa da Misericórdia de Sangalhos (concelho de Anadia). Pelas 9h, todos os 15 “filhos”, de recém-nascidos a adolescentes até 12 anos, estão já prontos para iniciar o dia nos respectivos estabelecimentos de ensino. Crianças-heróis, assim lhes chama Raquel Abrantes, directora-técnica do CAT. Meninos e meninas “que aprendem, dia após dia, a lidar com situações que as marcam profundamente”.
Benjamim Pires confessa que o berço da história teve os seus cardos. “A comunidade do Silveiro, inicialmente, relacionava CAT a um Centro de Acolhimento de Toxicodependentes e, por isso, as pessoas tinham muita resistência.” Hoje, a comunidade está perfeitamente tranquila.
Aos momentos menos positivos, Raquel Abrantes responde com um sorriso denunciador. Existem, sim, como em todas as famílias. E a do CAT de Sangalhos “é uma grande família e, como todas as outras, tem de aprender a lidar com conflitos”.

Atitude afectuosa, mas firme

Incutir regras é a missão mais difícil. Para o “pai” e para os(as) restantes tutores. Na Solsil, três técnicos – uma psicóloga (que é também coordenadora do CAT), uma técnica de serviço social e um educador – dividem entre si o papel de “encarregados de educação”. Para além dos nove prefeitos, que com eles partilham as 24 horas do dia, ou o tempo que necessário for. Porque este não é apenas mais um emprego, é uma dedicação a tempo inteiro. “Os funcionários não podem estar só pelo dinheiro, também têm que estar pelo coração e quererem dar-se às instituições”, ressalva Benjamim Pires.
As fugas são uma constante. Fugas de revolta, de raiva. Inicialmente, cada fuga era uma fatalidade. Agora, o presidente da Solsil já não pensa em estrangular as janelas com grades. “Eles fogem, mas regressam sempre, e sozinhos.” Elas são ainda mais difíceis do que eles. E quando entra um novo elemento, lembra ao grupo tempos de rebeldia. Volta-se à estaca zero. “São 15 dias em que tudo vareja, mas depois entra nos eixos.”
“Os laços familiares, mesmo quando destrutivos, correspondem ao padrão conhecido pela criança, pelo que haverá sempre uma fase de adaptação em que a tristeza, as saudades, a zanga estarão presentes”, explica a pedopsiquiatra Áurea de Ataíde. A quem trabalha diariamente com estes jovens, a pedopsiquiatra deixa um conselho: “uma atitude afectuosa mas firme, um comportamento coerente e ao mesmo tempo discreto, evitando que as crianças criem laços de dependência, serão os mais adequados”.

Casas de Autonomia

Aos 18 anos, estes jovens devem estar preparados para ingressar no mundo do trabalho. “Mas, se antes era difícil, agora é impossível”, lamenta Benjamim Pires. Também se lhes possibilita a continuação dos estudos, até ao ensino superior.
Para os mais responsáveis, o Estado/Segurança Social deve proporcionar as chamadas “Casas de Autonomia”, casas que, a partir dos 16/18 anos, são governados por estes jovens, com vigilância de uma instituição. Também a Solsil tem projectado a criação de uma Casa de Autonomia. “Há a possibilidade de encetarmos uma parceria com a Câmara e Segurança Social, no sentido de demolirmos uma casa que temos e fazermos três apartamentos.”
Apesar de todas as dificuldades, Benjamim Pires não hesita em classificar esta missão de “entusismante” e “aliciante”, um “desafio contínuo”. “Temos jovens inteligentes, que nos obrigam a estar sempre atentos. Outros são como diamantes – duros, mas verdadeiras jóias”.
Oriana Pataco

Sem comentários:

Enviar um comentário